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Dez anos de Lei Maria da Penha

Wania Pasinato

O que queremos comemorar?

A Lei Maria da Penha, que “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”,1 é uma demanda antiga dos movimentos de mulheres e feministas no Brasil. Constitui uma resposta ao grave problema da violência contra as mulheres cuja elaboração tornou-se possível a partir da decisão que condenou o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no caso de Maria da Penha Maia Fernandes (2002).2 Elaborada por um consórcio de organizações não governamentais feministas, por juristas e parlamentares alinhados com a defesa dos direitos das mulheres, e com o apoio da, então, recém-criada Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, o texto legislativo reflete essa luta, o que foi reconhecido pelas Nações Unidas, que, em 2008, destacaram a Lei Maria da Penha como “o culminar de uma prolongada campanha das organizações de mulheres, envolvendo também organismos nacionais, regionais e internacionais, tais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos”.3

No contexto nacional, a LMP é reconhecida por seu caráter inovador e paradigmático com relação às medidas que introduz com o objetivo de oferecer uma abordagem mais compreensiva da violência contra as mulheres. Entre as mudanças promovidas pela legislação, encontra-se a adoção da definição de violência contra a mulher presente na Convenção de Belém do Pará4 e a classificação da violência doméstica e familiar como violação dos direitos humanos. Essa violência é nomeada como resultado de relações de dominação e hierarquia estruturadas a partir da desigualdade de gênero. Dessa forma, a lei reconhece que a violência doméstica e familiar não é problema que afeta apenas algumas mulheres, repudiando a possibilidade de tratá-la como uma questão de caráter privado ou relacionado ao histórico individual e afirmando que, potencialmente, pode afetar todas as mulheres no curso de sua vida.

A definição de violência também é ampliada para abranger abusos e constrangimentos de natureza física, sexual, psicológica, patrimonial e moral. Expande também o conceito de vínculo familiar e se refere a pessoas unidas por vínculos de intimidade e afeto; vínculos que podem ser atuais, passados e existir independentemente da coabitação (para os casos de namorados, por exemplo). Outra inovação da lei: as relações interpessoais independem de orientação sexual.

A LMP representa um conjunto de diretrizes para responsabilização do(a)s autore(a)s de violência, de proteção das mulheres e seus/suas familiares, de acesso a direitos e à justiça e de ações de prevenção, incluindo ações no campo da educação escolar. Considerando esse conjunto de medidas, a LMP se apresenta como vetor para as políticas públicas e um instrumento de transformação social forjado nas teorias e na práxis do movimento feminista, inspirado nos movimentos de mudanças legislativas e políticas de direitos das mulheres no contexto internacional.5

Com tantas mudanças, a legislação requer que governos e instituições de justiça se adaptem para acolher as novas atribuições e competências correspondentes às medidas previstas, a partir de uma abordagem integral e articulada com a perspectiva de gênero, ou seja, deslocando as mulheres para o centro das atenções, ao reconhecê-las como sujeitos de direitos protegidos pela lei, e aplicando de forma equilibrada e de acordo com as especificidades de cada caso as medidas que responsabilizem o(a)s autore(a)s da violência e permitam às mulheres superar a situação em que se encontram, para que possam reconstruir ou constituir novas relações numa vida sem violência.

Nesses dez anos, foram registrados muitos avanços na implementação da lei, tanto no que se refere à criação de serviços especializados, à formação e sensibilização de profissionais para o atendimento, quanto no que diz respeito à conscientização da sociedade quanto à gravidade da violência doméstica e familiar como problema a ser tratado por meio de políticas públicas especializadas e direcionadas não apenas a punir a violência, mas também, e principalmente, a prevenir e reduzir a tolerância com relação a novos atos.

Contudo, os avanços são discretos diante do tamanho da tarefa a ser realizada. Parcelas da sociedade brasileira e das instituições que devem aplicar a lei e proteger os direitos das mulheres permanecem resistentes às mudanças culturais e institucionais necessárias para que a lei seja aplicada de forma integral e eficaz. Em dez anos, a Lei Maria da Penha foi alvo de permanentes ataques, incluindo declarações de inconstitucionalidade que pretenderam suspendê-la por ferir os princípios constitucionais de igualdade entre homens e mulheres. Outras ameaças circulam no Congresso Nacional em meio a mais de cem projetos de lei que trazem propostas de combater a violência contra as mulheres, alguns deles afastando a perspectiva de gênero e/ou ignorando a abordagem integral prevista na lei.

Nesse cenário, no ano em que a Lei Maria da Penha completa 10 anos, as celebrações estão caracterizadas por um misto de alegria e apreensão. Como ocorre nessas datas, os momentos de reflexão se dedicam a exaltar os acertos e os avanços, analisar os aspectos desafiadores e renovar os compromissos com vistas a uma implementação mais eficaz e efetiva para a transformação de uma sociedade mais igualitária entre homens e mulheres.6

Neste artigo, proponho-me a realizar esse balanço a partir de um evento recente e que ensejou perguntas sobre como queremos conduzir a implementação da LMP nos próximos anos e em quais condições sociais e políticas isso ocorrerá. Refiro-me à controvérsia em torno de um projeto de lei em tramitação no Senado Federal e responsável por catalisar forte reação entre os diferentes setores envolvidos com a aplicação da lei e defensora(e)s dos direitos das mulheres.

O PLC 07/2016

O Projeto de Lei da Câmara (PLC) 07/2016 objetiva alterar a LMP no Capítulo 3º, que trata do atendimento pela autoridade policial e dispõe sobre “o direito da vítima de violência doméstica de ter atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado, preferencialmente, por mulheres”.7

Sinteticamente, o projeto introduz três novos artigos na LMP. Os dois primeiros artigos tratam de diretrizes para que o atendimento policial e pericial seja especializado tanto no que toca à adequação de espaços físicos, quanto na escuta ativa e humanizada, evitando a revitimização das mulheres. O terceiro artigo modifica o texto legislativo para que a(o)s delegada(o)s de polícia possam aplicar as medidas protetivas de urgência, de forma imediata e sempre que verificada a presença de risco atual ou iminente à integridade física ou mental da vítima ou de seus/suas dependentes.

O PLC 07/2016 chegou a conhecimento público em maio de 2016, à luz do relatório favorável da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, encaminhando o projeto para votação. Muitas vozes se levantaram em torno da proposta, tanto para sua defesa quanto para sua crítica, envolvendo delegada(o)s de polícia, representantes do Ministério Público, Defensoria Pública e Poder Judiciário, e o movimento feminista.8

Sua apresentação no Senado Federal se fez acompanhada de forte apoio da bancada parlamentar formada por policiais civis e militares,9 ampliada pela mobilização de policiais civis, sobretudo delegadas de polícia que atuam nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulheres. O principal argumento do grupo de defensoras(es) do PLC 07/2016 é a necessidade de garantir melhor atenção e proteção imediata às mulheres que se encontram em situação de risco. Este é também o argumento que fundamenta o parecer do relator que acolheu o PL 07/2006 no Senado Federal.

O tom uníssono desse discurso foi rapidamente quebrado por outras vozes que, mesmo alinhadas com o interesse em promover a melhor atenção e proteção para as mulheres, passaram a reivindicar espaço na discussão sobre a pertinência da mudança proposta e seus efeitos sobre a Lei Maria da Penha, argumentando pela inconstitucionalidade da proposta – argumento muito forte entre os operadores jurídicos.10 Em meio aos debates, a tramitação foi suspensa e uma audiência pública foi realizada na qual juntaram-se também posicionamentos de parlamentares e de mulheres vítimas de violência, ocasião em que os embates evidenciaram a necessidade de maior cautela e discussão antes de possível aprovação.11

Ao somar-se a esse debate, o movimento feminista trouxe à tona a preocupação com a integralidade do texto legislativo e a fragilização a que a lei estaria exposta a partir de uma mudança substantiva como a que estava sendo proposta. Sobretudo, reivindicou seu lugar de legitimidade para tratar de mudanças à lei cuja existência é um marco histórico das lutas feministas pelo reconhecimento dos direitos das mulheres.

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